Ópera Menor
À noite, o mar de silêncio da madrugada é interrompido por uma ilha de sons a serem escutados.
Motores de automóveis deslocam-se no perímetro. Quase como tubarões rondando a beira da praia.
Conversas, alegres e com risadas, aparecem ao fundo por todo o local.
Ao fim da música o prato da bateria é tocado e sua vibração metálica mistura-se ao infinito com o ruído contínuo do óleo fervente.
As pessoas enfileiradas de pé e em silêncio esperam sua vez para ordenar e pedir. O modo imperativo é trocado por quatro ou seis cliques agudos.
A coletânea sertaneja é alta ao lado das conversas boêmias. A alguns metros dali, porém, a música aparece como um sussurro, um ruído ao fundo, um sono leve interrompido por caixas ao chão que ecoam por todo o local.
Não uma, mas dezenas de caixotes jogados e arrastados.
Virados sobre a mesa evocam uma avalanche de cebolas em percussão.
Próximo aos caixotes, estruturas de tubos metálicos rangem ao serem movimentadas ou apertadas.
Para criar espaço cria-se som. Um chute em um tambor plástico provoca um longo som.
Mas nem um desses é tão autoritário quanto o alarme. Um alarme alto em dois bipes compridos mandam os desatentos olharem, os sentados a se levantarem e os de pé a andarem. Depende apenas da sua vez, uma dança de movimento sincronizada por apenas um som que rasga o lugar.
De dia existe o chiado do vento que compete com dezenas de outros ruídos provocados por um tempo muito mais movimentado. São mais motores e mais conversas.
O piar de um pássaro quase não é percebido.
Marteladas ditam o ritmo do lugar.
Um conserto de panelas que, para um ouvinte excêntrico, pode soar como um concerto de panelas.
Para os músicos que consertam, as ferramentas são baquetas e as panelas são espécies de agogôs. Os vocais são compartilhados entre todos. Uma ópera múltipla e ordinária.
As letras alegres falam da vida de outros ou do próprio trabalho.
Buzinas são tocadas. Elas são mais aceitas de dia.
As crianças também são. E cantam sobre si mesmas. Externalizam alegremente os seus gostos e seus desejos.
Muitos pedidos são seguidos de cliques. Alguns pedidos ligam motores que vibram alto enquanto moem a cana.
Perto do meio-dia os alarmes são mais frequentes e os sons dos caixotes batendo voltam. Alfa e Ômega.
As mesas metálicas fechando são como gongos que anunciam o fim da ilha.
Com o tempo a maré das ruas sobe e os tubarões vão entrando.