ser e estar
Havia ali três categorias de pessoas: os fixos, os transitórios e os atravessadores. Apesar das claras diferenças de suas intensões ao entrar naquele território, não existia entre eles qualquer tipo de rivalidade. Talvez certos conflitos surgissem esporadicamente aqui ou ali, afinal a própria natureza do espaço exigia deles uma certa condescendência.
Sei que os fixos provavelmente eram os primeiros a chegar. Até porque, esse território parece existir apenas durante a permanência desse grupo. Sendo a presença deles indispensáveis para sua materialização. Quase que religiosamente, um pouco depois do sol nascer no horizonte, já estavam eles ali com pilhas e mais pilhas de seus artefatos. Cada um com seu lugar delimitado por pequenas estruturas, se organizavam e permaneciam na espera pela visita dos transitórios, enquanto observando ocasionalmente os atravessadores que lentamente iam se concentrando aos arredores.
Não existia uma hora exata da chegada dos outros dois. Esporadicamente, surgiam das mais diversas formas, dos mais distintos cantos. De moto, de carro, de bicicleta, a pé. Não se sabe ao certo de onde eles vinham. Se era de um lugar próximo ou distante o suficiente para que uma caminhada não fosse possível. Não que isso importe. Afinal, nem mesmo os fixos se sabe exatamente de onde vieram. Claro que com uma simples pergunta para um ou para outro, o mistério seria resolvido. Não é como se estivessem ali em segredo. Estavam todos a mostra para verem e serem vistos.
Os Transitórios em número eram muitos. Mais que Fixos, mas nem tanto quanto os Atravessadores. Eles permaneciam pouco tempo. Tão pouco que raramente a sua estadia completava uma hora (às vezes nem sequer completavam 30 minutos). Os passos lentos ao percorrer o chão eram sua identidade. Mesmo que chegassem ali em diferentes transportes, ao adentrar naquele território, andavam. Por vezes em um percurso um tanto deambulatório, circularam entre pontos antes de partir para outros cantos fora ali. Não sei ao certo se buscavam algo em específico, ou se era um desejo de curiosidade por circular os olhos dentre as mais diferentes coisas que os Fixos traziam consigo. O que sei de fato é que por ali eles se deslocavam em idas e vindas, por vezes certeiras e direcionadas, por vezes vagas e flanas.
Nisso, era claro que eles estavam ali para se encontrar. Os Fixos e os Transitórios. Como se estivem em dois lados distintos de uma janela, trocavam entre si palavras, valores e artefatos. Curioso perceber que alguns talvez se conhecessem de outros encontros, mas esse é um fato que permanece no talvez. Isso, pois o ambiente causava uma certa confusão. Transmitia uma dinâmica de relações que era quase familiar, mesmo que certamente muito deles nem sequer eram conhecidos. Inclusive, conversas dispersas e amigáveis sobre os mais diversos acontecimentos das vidas fora dali contribuíram para essa impressão. Papos que começavam sempre com um caloroso bom dia e contornavam as verdadeiras intenções desses dois tipos.
Evidentemente, existiam ali aqueles que preferiam diálogos mais diretos, secos, que encerraram tudo em duas ou três sentenças. Apensar disso, a dinâmica do espaço exigia sempre um contato, mesmo que mínimo. Todos os transitivos adentravam ali com sacos, sacolas e caixas preparados para levar algo. Todos os Fixos adentravam ali com sacos, sacolas e caixas preparados para deixar algo. Uma relação de partes igualmente intencionadas com uma inevitável mediação feita por palavras, vontades e contatos.
E os atravessadores? Você pode me perguntar. De fato aquele território ganhava sentido em sua maioria pelos encontros entre Fixo e Transitórios, mas tinha ali essa terceira categoria, curiosamente em maior quantidade. Uma figura que como o próprio nome sugere está em um fluxo de deslocamento. Existem mesmo na ausência dos outros dois se movendo sem necessariamente se ater ao caminho. Mesmo o que não são atentos, notam a materialização do território pelos Fixos, já se acostumaram com isso.
Diferente dos Transitórios que tem na sua identidade o deslocamento a pé, os Atravessadores circulam das mais distintas formas. Sua intencionalidade ao adentrar naquele território não é outro senão de percorrer um trajeto. Às vezes, nem sequer entravam nos espaços que os outros dois habitavam, apenas tangenciam os seus limites. Passam por ali por uma necessidade que não residia na existência daquele lugar. Existiam e continuariam ali até mesmo depois que aquele território se rompe com a partida dos fixos.
Lugar intrigante. De relação tripla de contatos, diálogos e trocas. Um território que se sobrepõe a espaços que já existem. Se materializa com a chegada dos Fixos. Se abre momentaneamente para os transitórios. Se rompe com a sua partida. E assim segue por ciclos de aparição.